sábado, 4 de julho de 2009
A poesia de Antônio Lázaro de Almeida Prado
Por Antônio Cândido
Começo por duas lembranças, a primeira das quais é a seguinte: antes
de conhecer pessoalmente Antônio Lázaro de Almeida Prado, conheci-o de
vista na segunda metade do decênio de 1940, conversando com alguns
rapazes no jardim da praça central de Piracicaba, em frente ao hotel onde eu
costumava ficar e em cuja porta, dizia-se, Almeida Júnior fora apunhalado.
Ele era estudante secundário e me informaram que andava publicando
uns artigos corajosos contra a violência do trote aplicado aos calouros da
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a ilustre ESALQ da
Universidade de São Paulo. Em seguida, veio cursar Letras nesta e ficamos
logo amigos.
Aí entra a segunda lembrança. Em uma das nossas primeiras
conversas, ele, vibrando de revolta, comentava as cartas da Religiosa
Portuguesa, a magnitude do seu amor lancinante a contrastar com a
insensibilidade do amado, incapaz de avaliar a grandeza da sua paixão e do
seu sacrifício. Era um boçal! – exclamou como fecho, e eu pensei com os meus
botões como era bonito ver, séculos depois, o fidalgo francês sonoramente
denominado Noel Bouton, conde de Saint-Léger e marquês de Chamilly
castigado pelo verbo arrasador do moço justiceiro.
Lembro esses fatos tão remotos para dizer que eles prenunciavam o
homem maduro que escreveu os poemas deste livro, nos quais encontramos
tanto a rejeição da violência e o profundo senso da justiça quanto a
dignificação do amor. Isso se ajusta ao perfil de Antônio Lázaro de Almeida
Prado, que aprendi a conhecer bem ao longo de uma boa e velha amizade de
mais de meio século. Ele sempre me impressionou pelo fervor contido, mas
atuante, com que encara tudo, no quotidiano, nas convicções, na profissão, na
literatura. Fervor associado ao culto de todas as nobrezas do sentimento e do
espírito e, contrariamente, à aversão pelas vulgaridades e pelas descaídas que
mancham o ser e a conduta. Os rompantes do moço de Piracicaba r da USP
eram sementes da sua trajetória.
O que antes de mais nada chama a atenção do leitor desses versos é a
opção formal, fruto de uma fusão bem elaborada da tradição com a
modernidade. Veja-se, a título de exemplo significativo, a maneira com que o
poeta usa o soneto, fazendo-o deslizar das cadências e sonoridades regulares
à liberdade dos ritmos e à supressão da rima. E não raro percebermos, neles e
noutros poemas, laivos de sutileza barroca fundidos na naturalidade coloquial.
Esses traços denotam o poeta que é também professor de literatura, cheio de
erudição, sentindo bem o passado cultural, mas dotado de mente sem amarras
que o torna sensível ao relevo do nosso tempo.
Os interesses que aparecem neste livro são muitos, e as soluções
encontradas para manifestá-los deixam claro o domínio que o autor possui
sobre a palavra poeticamente manipulada. Ficando na chave das duas
lembranças registradas no começo, lembro, por exemplo, como o veio justiceiro
e a retidão espiritual de Almeida Prado aparecem disseminados em muitos
poemas que não os versam especificamente, mas se infiltram neles como
preocupação constante. Isso revela o humanista consciente da dimensão
social, que não precisa recorrer à tonalidade panfletária, porque a revolta
contra a iniqüidade parece estar sempre presente no seu modo de encarar a
vida. A contida discrição com que isto ocorre mostra que o autor não é um
político em verso, mas um poeta cheio do sentimento de solidariedade em
relação ao semelhante. O mocinho intemerato das lutas contra a truculência na
sua cidade amadureceu como poeta empenhado.
A segunda lembrança me traz ao que se poderia qualificar, de maneira
meio antiquada, como lira amorosa, tão viva e tão forte neste livro. Nela ocorre
a contensão apaixonada que parece dar mais força à expressão do sentimento.
Os versos carregados de ternura e paixão que a compõem são elaborados de
maneira a transformar o encantamento afetivo em válido objeto de arte. Alguns
dos poemas mais bem realizados deste livro foram compostos nesta linha,
denotando uma poesia calorosa, plantada na vida, ressumando a experiência
dos afetos, que se tornou objeto formalmente elaborado, pronto para ser
compartido pelo leitor como mensagem para todos. Isso, porque a arte do
poeta soube dar forma à explosão de sentimento que atraia o jovem
universitário nos textos atribuídos então à patética Mariana Alcoforado. Como
lemos num dos poemas:
Recuso a combustão da chama exígua.
De fato, neste livro, e não apenas na lira amorosa, há uma intensidade
passional que afasta a rotina do mais-ou-menos, fixada de maneira eficaz no
verso final como
... a paz das ostras,
que deve ser evitada porque, diz outro poema,
Desmedida
É a vida.
Animado pelas vibrações existenciais, o poeta adquire a clarividência
que permite descobrir o sentido profundo das coisas, dos seres, das situações.
Sob este aspecto, há em sua obra poética muito do que aparece num poema
excelente, Palimpsesto, de certo modo símbolo da capacidade de raspar a
aparência a fim de desnudar o cerne.
O prêmio que o leitor ganha com a leitura deste livro é o convite para
partilhar as sublimações que a poesia efetua sobre o material da vida por meio
da forma e pode ser comparada à força redentora do amor, como este aparece
no belo soneto Vencendo o tempo que jamais nos vence:
No recíproco dom a nossa morte
Afirma-se, acrescenta-se e persiste
Nesse amor, superior a tempo e sorte.
A criação poética é um pouco isso, sobretudo quando modulada com o
fervor e a amplitude que este livro revela e permite ao poeta percorrer uma
gama extensa, que comporta, além do que já vimos, a leveza, o encanto das
euforias que também tecem a vida noutras escalas e podem encarnar-se em
poemas tão alados quanto Fonética existencial:
Vôo ágil
Vão vislumbre
Chama espessa
Vaga espuma
Vida: vôo
Vagalume...
Pode-se dizer melhor?
Antonio Candido de Mello e Souza
COMPARTILHADO
Solitário indivíduo estendo pontes
E solidário me faço além do espaço
Exíguo deste corpo agreste e lasso,
Navegando para além dos horizontes.
Compartilhada vida só em parte
Pois que, por outra parte, fujo à ilha,
E desfruto a perpétua maravilha
De à angusta solidão fugir com arte.
Solitário, mas sempre solidário,
Fugindo ao tempo precário e repartido,
No bem do amor encontro o meu sacrário
E tudo o que é bem meu eu condivido
Não vendo noutro ser algo contrário
Mas o que faz o inferno suprimido.
Assis, 15 de junho de 2007
Antônio Lázaro de Almeida Prado
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Interlúdio paulistano (1)
|
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Interlúdio paulistano (2)
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário